DNA extraído de múmias descobertas na Líbia reconta a história de um Saara verdejante e revela um povo enigmático que viveu isolado, mas conectado culturalmente.
O Saara já foi um paraíso tropical
Hoje dominado por dunas escaldantes, vento seco e horizontes áridos, o Deserto do Saara esconde um passado surpreendente. Há cerca de 7.000 anos, essa imensa faixa do norte africano era completamente diferente: uma savana verde, repleta de lagos, rios, vegetação exuberante e animais como hipopótamos e elefantes.
Neste cenário fértil, no abrigo rochoso de Takarkori, no sudoeste da Líbia, floresceu uma pequena comunidade humana. Seus restos mortais, agora estudados por cientistas, estão ajudando a resgatar um capítulo até então oculto da história africana.
Genomas completos extraídos de múmias milenares
Em um feito científico inédito, uma equipe internacional liderada por arqueólogos da Universidade Sapienza de Roma e geneticistas do Instituto Max Planck, na Alemanha, conseguiu sequenciar os primeiros genomas completos de duas mulheres enterradas em Takarkori.
A pesquisa foi publicada na prestigiada revista Nature e revela que essas mulheres pertenciam a uma população geneticamente isolada, cujas linhagens ainda não haviam sido registradas em nenhuma outra parte do continente africano.
“O genoma completo carrega a memória genética de muitos ancestrais. É como abrir um baú ancestral esquecido no tempo”, disse Harald Ringbauer, arqueogeneticista do Instituto Max Planck.
Isolamento genético, mas trocas culturais
Embora fossem geneticamente distintos, os habitantes do chamado Saara Verde não estavam totalmente isolados do restante da África. Evidências arqueológicas indicam que essa civilização praticava o pastoreio, pescava e mantinha trocas culturais com grupos do Vale do Nilo e da África subsaariana, como demonstram cerâmicas encontradas no local.
Segundo os especialistas, essas práticas não foram introduzidas por migração, mas sim por difusão cultural, o que mostra que, mesmo isolados geneticamente, esses povos mantinham contato com outras comunidades por meio do comércio e da troca de saberes.
“Eles eram isolados geneticamente, mas não culturalmente. Isso mostra como o conhecimento se espalha sem que as pessoas necessariamente se movam”, afirma Savino di Lernia, coautor do estudo.
Um elo perdido com o passado profundo da humanidade
O DNA das múmias indica uma ancestralidade norte-africana extremamente antiga, possivelmente originada ainda no período Pleistoceno, que terminou há cerca de 11 mil anos. Isso sugere que essa população não foi substituída por migrantes, como se pensava, mas sim que formava uma linhagem contínua e única, hoje desaparecida.
A pesquisadora Louise Humphrey, do Museu de História Natural de Londres, destaca que o estudo reforça a ideia de que o pastoreio se espalhou na região por contato cultural, e não por ocupação militar ou substituição populacional.
Um feito técnico inédito na arqueogenética
Preservar DNA em um clima quente e seco como o do Saara é extremamente difícil. Ainda assim, a equipe conseguiu sequenciar o DNA nuclear completo de esqueletos milenares, algo que até então era considerado praticamente impossível na região.
“Foi necessário desenvolver técnicas novas para conseguir extrair esse material genético com sucesso. Cada fragmento conta uma história sobre quem eles foram e como viviam”, explicou Ringbauer.
Takarkori: o início de uma nova jornada científica
As descobertas em Takarkori são apenas a ponta do iceberg. Os cientistas acreditam que há muito mais sob as areias do Saara. Novas escavações, aliadas à análise genômica e a estudos ambientais, devem revelar detalhes cada vez mais profundos sobre a história humana no norte da África — antes do deserto se tornar o maior do mundo em clima quente.