Dados do projeto DESI, mapeando milhões de galáxias, sugerem que a força misteriosa que acelera o universo pode estar enfraquecendo com o tempo, forçando uma possível revisão do nosso modelo cósmico padrão.
O universo guarda segredos em suas vastas extensões, e um dos maiores enigmas é a natureza da energia escura. Responsável por cerca de 70% de toda a energia do cosmos e pela aceleração da sua expansão, ela permanece um mistério profundo para a ciência. Contudo, novas e intrigantes pistas, vindas de uma das mais ambiciosas varreduras do céu já realizadas, sugerem que essa força onipresente pode não ser tão constante quanto se pensava. Evidências recentes indicam que a energia escura pode estar evoluindo, um desenvolvimento que pode abalar os alicerces da nossa compreensão do universo.
O Enigma da Expansão Acelerada e a “Constante” que Talvez Não Seja
Desde a descoberta surpreendente, no final dos anos 90, de que a expansão do universo está se acelerando, os cientistas têm lutado para explicar a força motriz por trás desse fenômeno. A explicação mais aceita envolve a energia escura, uma forma de energia hipotética que permeia todo o espaço. Por muito tempo, o modelo padrão da cosmologia tratou a energia escura como uma “constante cosmológica” – uma propriedade imutável do próprio vácuo, com densidade constante ao longo do tempo e do espaço. No entanto, a verdadeira natureza dessa energia sempre foi uma lacuna em nosso conhecimento. “Embora represente 70% da energia no cosmos, os pesquisadores ainda não sabem exatamente o que é a energia escura,” afirma Mustapha Ishak-Boushaki, professor de física e astrofísica da Universidade do Texas em Dallas.
DESI: Mapeando o Universo em 3D para Desvendar o Mistério
É nesse cenário de incertezas que entra em cena o Instrumento Espectroscópico de Energia Escura (DESI – Dark Energy Spectroscopic Instrument). Instalado no Telescópio Nicholas U. Mayall de 4 metros no Observatório Nacional Kitt Peak, no Arizona (EUA), o DESI é uma máquina de observação cósmica sem precedentes. Equipado com 5.000 “olhos” de fibra óptica, ele pode observar a luz (e medir o desvio para o vermelho, ou redshift) de 5.000 galáxias simultaneamente.
O projeto, uma colaboração internacional com mais de 900 pesquisadores e gerenciado pelo Laboratório Nacional Lawrence Berkeley (LBNL), está em seu quarto ano de operação. Seu objetivo é criar um dos maiores mapas 3D do universo já feitos, medindo a posição e a distância de aproximadamente 50 milhões de galáxias e quasares (núcleos galácticos extremamente brilhantes) para traçar a história da expansão cósmica nos últimos 11 bilhões de anos. Em 19 de março deste ano, a colaboração DESI divulgou uma análise robusta dos dados coletados nos seus três primeiros anos, incluindo medições precisas de quase 15 milhões desses objetos cósmicos.
As Evidências Crescentes de uma Energia Escura Dinâmica
É justamente a análise desses dados, liderada em parte por Ishak-Boushaki, que está causando alvoroço na comunidade científica. Ao combinar as medições ultraprecisas do DESI sobre a distribuição das galáxias – utilizando um método que mede as Oscilações Acústicas Bariônicas (BAO), padrões impressos no cosmos pelo universo primitivo que funcionam como uma “régua cósmica” – com outros conjuntos de dados cosmológicos (como observações de supernovas distantes, a luz de fundo cósmica e o efeito de lente gravitacional), os pesquisadores encontraram indícios consistentes de que a energia escura pode estar evoluindo. Mais especificamente, os dados sugerem que seu efeito pode estar enfraquecendo ao longo do tempo cósmico.
“A descoberta da energia escura, há quase 30 anos, já foi a maior surpresa da minha vida científica”, comentou David Weinberg, professor da Universidade Estadual de Ohio e colaborador do DESI. “Essas novas medições oferecem a evidência mais forte até agora de que a energia escura evolui, o que seria outra mudança impressionante em nossa compreensão de como o universo funciona.” Andrei Cuceu, pesquisador do LBNL, acrescenta: “É interessante e nos dá mais confiança ver que muitas linhas diferentes de evidência apontam na mesma direção.” A hipótese de que a energia escura está evoluindo ganha, assim, um peso sem precedentes.
Implicações Cósmicas: O que Significa uma Energia Escura Variável?
Se essa tendência se confirmar com mais dados, as consequências para a cosmologia e para o futuro do universo serão profundas.
Um Universo com Futuro Incerto?
Uma energia escura que enfraquece com o tempo mudaria radicalmente o destino final do cosmos. “Se isso continuar, eventualmente a energia escura não será mais a força dominante no universo”, explica Ishak-Boushak. “Portanto, a expansão do universo deixará de acelerar e seguirá a uma taxa constante ou, em alguns modelos, poderá até mesmo parar e colapsar.” É crucial notar, contudo, que esses cenários ocorreriam em escalas de tempo imensas, na casa dos bilhões e bilhões de anos.
Revisando o Modelo Padrão da Cosmologia
Talvez a implicação mais imediata seja a necessidade de revisar o Modelo Padrão da Cosmologia (conhecido como Lambda-CDM), que assume uma energia escura constante (o termo Lambda). Uma energia escura evoluindo exigiria “nova física”, teorias ainda desconhecidas para descrever seu comportamento dinâmico. Jason Rhodes, cosmologista do JPL/NASA (não envolvido no DESI, mas líder científico do telescópio Euclid), observa que já existe uma “tensão leve mas persistente” entre as medições do universo primitivo (como a radiação cósmica de fundo) e as do universo mais recente (como as do DESI). “Isso significa que nosso modelo mais simples de energia escura não permite exatamente que o universo primitivo que observamos evolua para o universo tardio que observamos,” diz ele. Uma energia escura dinâmica poderia ser a chave para resolver essa tensão.
Cautela Científica e os Próximos Passos
Apesar do entusiasmo, os cientistas envolvidos enfatizam que ainda é cedo para cravar uma descoberta revolucionária. As evidências atuais são fortes e consistentes entre diferentes métodos, mas ainda não atingiram o nível estatístico necessário (o famoso “cinco sigma”) para declarar que a constante cosmológica foi derrubada. “Minha primeira grande questão é se continuaremos a ver evidências de energia escura em evolução conforme nossas medições melhoram”, pondera Paul Martini, coordenador da análise no DESI.
O próprio DESI continuará coletando dados por mais um ano, o que aumentará significativamente a precisão das medições. A expectativa é que, em poucos anos, tenhamos uma resposta mais definitiva.
O Futuro da Investigação: Novos Olhos no Céu
A busca pela natureza da energia escura está longe de terminar. Uma nova geração de experimentos e observatórios está a caminho para fornecer dados ainda mais precisos e abrangentes:
- Spec-S5: Um projeto futuro que poderia medir 10 vezes mais galáxias que o DESI, mapeando todo o céu.
- Observatório Vera C. Rubin: Com seu poderoso telescópio, estudará supernovas com detalhe sem precedentes, fornecendo outra régua para medir a expansão cósmica.
- Telescópio Espacial Euclid (ESA): Já em operação, mapeará a distribuição da matéria escura e a geometria do universo.
- Telescópio Espacial Nancy Grace Roman (NASA): Com lançamento previsto para 2027, também terá como alvos principais a energia escura e a matéria escura.
“Seja qual for a natureza da energia escura, ela moldará o futuro do nosso universo”, reflete Michael Levi, diretor do DESI. “É bastante notável que possamos olhar para o céu com nossos telescópios e tentar responder a uma das maiores perguntas que a humanidade já fez.” Os próximos anos prometem ser decisivos na busca por desvendar um dos maiores mistérios do cosmos e entender se a energia escura está, de fato, evoluindo.