Pesquisa publicada na Nature, com participação brasileira, mostra que atividades humanas eliminam não só espécies presentes, mas também aquelas que poderiam existir, empobrecendo ecossistemas globalmente de forma subestimada.
Muitas vezes, ao contemplarmos uma paisagem que aparenta ser natural, podemos não perceber uma ausência crucial: a de inúmeras espécies de plantas que, ecologicamente, teriam condições perfeitas para prosperar ali, mas estão desaparecidas. Este fenômeno silencioso, batizado pela comunidade científica de “dark diversity” ou diversidade faltante, acaba de ser mapeado em escala global por um estudo exaustivo publicado ontem (2 de abril de 2025) na renomada revista Nature. A pesquisa lança uma nova luz sobre a profundidade do impacto humano nos ecossistemas, revelando uma perda de biodiversidade muito maior do que se imaginava.
O Retrato Invisível da Perda de Biodiversidade
O estudo é fruto de um esforço monumental da colaboração internacional DarkDivNet (Rede de Pesquisa em Dark Diversity), que mobilizou mais de 200 pesquisadores em todo o mundo. Sob a coordenação do professor Meelis Pärtel, da Universidade de Tartu (Estônia), a equipe analisou dados de 5.500 locais distintos, abrangendo 119 regiões do planeta. O foco era precisamente quantificar a diversidade faltante: o conjunto de espécies nativas que pertencem ao “pool” regional (ou seja, poderiam viver ali), mas que não são encontradas no local devido a diferentes pressões, especialmente as de origem humana.
Medindo o Potencial Perdido: Como o Estudo Foi Feito
Para garantir a comparabilidade dos dados, uma metodologia rigorosa e padronizada foi aplicada globalmente. “Em cada lugar, pesquisadores locais registraram todas as espécies de plantas e identificaram a diversidade faltante, isto é, as espécies nativas que poderiam viver ali, mas estavam ausentes,” detalha a professora Alessandra Fidelis, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp), campus de Rio Claro, uma das cientistas brasileiras envolvidas no projeto. “Isso nos permitiu compreender o potencial da diversidade vegetal no lugar e também medir o impacto das atividades humanas sobre a vegetação natural,” complementa.
A participação brasileira foi ativa desde o início. A Dra. Fidelis, com o auxílio fundamental de Mariana Dairel (sua então doutoranda, bolsista FAPESP), coletou dados cruciais na região de Itirapina (SP). A área, que mescla remanescentes de Cerrado com plantações de pinheiros e eucaliptos, serviu como um laboratório a céu aberto para investigar como diferentes níveis de antropização afetam a diversidade faltante.
O Contraste Chocante: Áreas Preservadas vs. Impactadas
Os resultados globais pintam um quadro preocupante. Ecossistemas em regiões com baixo impacto humano ainda conseguem sustentar, em média, mais de um terço das espécies de seu “pool” regional. A ausência das demais, nesse cenário, é majoritariamente explicada por limitações naturais, como a dispersão lenta de algumas espécies.
Contudo, a situação se inverte drasticamente em áreas sob forte pressão humana. Nesses locais, apenas cerca de uma em cada cinco espécies potenciais (20%) consegue de fato se estabelecer. Isso demonstra que o impacto antrópico vai muito além de erradicar espécies visíveis; ele cria barreiras que impedem a colonização por muitas outras, diminuindo o potencial ecológico da área. Os autores do estudo ressaltam que as contagens tradicionais de riqueza de espécies (quantas espécies existem) frequentemente mascaram essa perda de potencial, a verdadeira diversidade faltante, pois a variabilidade natural entre regiões pode ocultar o empobrecimento relativo causado pelo homem.
A “Pegada Humana” e Seus Efeitos Devastadores
O estudo utilizou o Indicador da Pegada Ecológica (Human Footprint Index) para medir o grau de perturbação humana, considerando fatores como densidade populacional, conversão de terras para agricultura ou urbanização, e presença de estradas e ferrovias. A análise revelou uma forte correlação: quanto maior a “pegada humana”, maior a diversidade faltante.
De forma alarmante, essa influência negativa não se restringe às áreas imediatamente ocupadas. Os efeitos podem se propagar por centenas de quilômetros, impactando até mesmo o interior de reservas naturais, que se mostram vulneráveis às pressões do entorno.
Causas da ‘Diversidade Faltante’: Um Diagnóstico Abrangente
O empobrecimento da flora potencial é atribuído a um complexo de fatores induzidos ou exacerbados pela atividade humana:
Fragmentação e perda de conectividade: Dificulta a movimentação de espécies entre áreas adequadas.
Defaunação: Desaparecimento de animais polinizadores e, crucialmente, dispersores de sementes.
Aumento de distúrbios: Incêndios mais frequentes ou intensos, extração madeireira, pisoteio.
Poluição: Alteração química do solo e da água (como a eutrofização).
Outros: Desmatamento, descarte de resíduos, introdução de espécies exóticas (embora não o foco principal aqui).
Implicações Urgentes para a Conservação
As descobertas trazem lições importantes e urgentes para a conservação da biodiversidade global.
O Alerta de Pärtel: Impacto Subestimado e a Meta 30×30
“Esse resultado é alarmante, porque mostra que as perturbações humanas têm um impacto muito mais amplo do que se pensava,” reitera o Prof. Pärtel. No entanto, ele aponta uma luz: “Descobrimos que a influência negativa da atividade humana era menos pronunciada quando ao menos um terço da região ao redor permanecia intacto.” Para Pärtel, isso valida e reforça a importância da meta global 30×30 (proteger 30% da Terra até 2030), sugerindo que a manutenção de grandes porções de paisagens naturais é fundamental para salvaguardar não apenas a diversidade presente, mas também o potencial futuro – a capacidade de reter e recuperar a diversidade faltante.
Além das Reservas: Uma Nova Ferramenta para Restauração
O estudo enfatiza que a conservação não pode se limitar às áreas protegidas. É crucial melhorar a gestão de toda a paisagem. O conceito de diversidade faltante oferece uma ferramenta prática nesse sentido. Ao identificar quais espécies nativas estão ausentes, mas deveriam ocorrer em uma área degradada, os projetos de restauração ecológica podem se tornar mais eficazes e direcionados, focando na reintrodução ou no favorecimento dessas espécies “perdidas”.
A Profª. Fidelis conclui: “Sabemos que o impacto humano (…) afeta a biodiversidade. Porém, este estudo vai além: mostra como estamos perdendo não somente as espécies que estavam ali antes, mas também as que potencialmente poderiam estar na área, podendo, dessa forma, afetar a regeneração natural.” Olhar para a diversidade faltante é, portanto, olhar para o potencial de recuperação dos ecossistemas.
A Saga da Colaboração DarkDivNet
A concretização deste estudo global foi uma jornada de perseverança. Iniciada em 2018 por Meelis Pärtel, a rede DarkDivNet enfrentou desafios logísticos, a pandemia de Covid-19 e a falta de um financiamento centralizado robusto. Contudo, o entusiasmo e o comprometimento de pesquisadores de diversos continentes, incluindo a equipe brasileira apoiada pela FAPESP, permitiram superar os obstáculos e gerar este conhecimento vital sobre a diversidade faltante e o real alcance da nossa pegada no planeta.