A descoberta de um esquema de fraudes que lesou aposentados e pensionistas através de descontos indevidos no INSS coloca o governo Lula diante de um complexo quebra-cabeça fiscal e político, cujo centro é a difícil equação entre a urgência social e a rigidez orçamentária. A necessidade de ressarcir as vítimas o mais rápido possível, uma determinação direta do presidente, colide com as amarras do arcabouço fiscal, levando o Ministério da Fazenda, na voz do secretário-executivo Dario Durigan, a defender que a solução passe por cortes em áreas sensíveis como o PAC ou as emendas parlamentares, descartando exceções à regra do teto de gastos. O episódio expõe as complexas engrenagens e os trade-offs inerentes à gestão das contas públicas brasileiras.
O Dilema Central: Compensação Urgente vs. Regra Fiscal
A posição da equipe econômica, externada por Durigan nesta segunda-feira (5 de maio, no cenário hipotético), é de total apoio ao ressarcimento: “A Fazenda quer pagar. A Fazenda nunca se colocou contra”. Contudo, a condição é pétrea: “desde que seja respeitado o limite de gastos do arcabouço fiscal”.
Aqui reside o cerne do problema. O arcabouço fiscal, regra que atualmente limita o crescimento da maior parte das despesas federais a um percentual do crescimento da receita, busca garantir a sustentabilidade da dívida pública e a credibilidade econômica do país. Abrir exceções, mesmo para situações socialmente justas como o ressarcimento de vítimas de fraude, poderia minar a confiança na regra e abrir precedentes perigosos, na visão da Fazenda. Portanto, a ordem é “acomodar esse pagamento dentro do espaço que existe”, mesmo que esse espaço seja exíguo.
As Opções na Mesa (e Seus Custos Políticos): PAC ou Emendas?
Se não há espaço para furar o teto, a solução exige remanejamento, ou seja, cortar de um lado para cobrir o outro. Durigan foi explícito ao apontar as rubricas mais prováveis de sofrerem bloqueios:
- PAC (Programa de Aceleração do Crescimento): Trata-se do principal programa de investimentos do governo Lula, englobando obras de infraestrutura (estradas, portos, energia, saneamento, etc.) consideradas essenciais para impulsionar o crescimento econômico e gerar empregos. Mecanismo: Os recursos do PAC são discriminados no orçamento e sua execução depende de liberações ao longo do ano. Impacto do Corte: Bloquear verbas do PAC significa paralisar ou adiar projetos, com consequências negativas para a atividade econômica, o emprego e a própria imagem realizadora do governo. O custo político de cortar na “menina dos olhos” do Planalto é altíssimo.
- Emendas Parlamentares: São recursos indicados por deputados e senadores para atender demandas de suas bases eleitorais (obras em municípios, custeio de saúde local, etc.). Uma parcela significativa delas (R$ 39 bilhões apenas em 2025, no cenário do texto base) é de execução obrigatória (“impositiva”), o que dificulta o corte. Mesmo as não impositivas são cruciais para a relação do governo com o Congresso. Impacto do Corte: Reduzir ou bloquear emendas gera atrito direto com parlamentares da base e da oposição, dificultando a aprovação de outras pautas governistas e enfraquecendo a articulação política. Durigan justifica mirar as emendas pelo seu peso (“maior destinação de recursos”), mas o custo político é igualmente elevado.
A escolha entre cortar no PAC ou nas emendas (ou uma combinação) representa um dilema de grande complexidade política para o governo.
A Via Judicial: Justiça Lenta para Vítimas com Pressa
Enquanto a Fazenda debate cortes orçamentários, outros setores do governo, como o Ministério da Previdência, defendem que o ressarcimento venha da responsabilização dos verdadeiros culpados: as entidades que realizaram os descontos fraudulentos. A Advocacia-Geral da União (AGU) já foi acionada para preparar ações regressivas e de improbidade administrativa contra essas associações e sindicatos.
Mecanismo: A AGU buscaria na Justiça o ressarcimento dos valores desviados e a punição dos responsáveis. Impacto: Embora seja a solução ideal do ponto de vista da justiça (punir o fraudador, não o orçamento público), o tempo do Judiciário é notoriamente lento. Processos complexos como esses podem levar muitos anos até uma decisão final e a efetiva recuperação dos valores, frustrando a determinação de Lula por um ressarcimento rápido às vítimas, muitas das quais são idosos de baixa renda.
O Desafio da Quantificação: O Tamanho Incerto da Fraude
Um obstáculo adicional para qualquer solução é a dificuldade em determinar o valor exato a ser ressarcido. As estimativas divergentes da CGU (R$ 6,3 bilhões) e do INSS (“dezenas de milhões”), ambas baseadas em amostragem, demonstram a complexidade de auditar milhões de benefícios para identificar com precisão cada vítima e o montante exato do prejuízo. Sem esse número consolidado, definir o tamanho do corte necessário no PAC ou nas emendas, ou mesmo o valor a ser cobrado judicialmente, torna-se um desafio adicional.
Um Teste para a Gestão Fiscal e Política
O caso do ressarcimento às vítimas da fraude no INSS encapsula muitos dos dilemas da gestão pública brasileira. A necessidade de agir rapidamente para corrigir uma injustiça social colide com as restrições fiscais impostas pelo arcabouço e com a lentidão dos processos judiciais. A solução proposta pela Fazenda – cortar no PAC ou nas emendas para garantir o pagamento dentro das regras – evidencia a falta de margem de manobra no orçamento e impõe escolhas políticas dolorosas, com potencial de gerar desgaste para o governo seja qual for a opção. A forma como o governo Lula navegará essa encruzilhada, equilibrando responsabilidade fiscal, pressão por resultados sociais imediatos e a complexa relação com o Congresso, será um teste importante para sua capacidade de gestão e articulação política.