A Polícia Federal investiga uma nova frente no escândalo dos descontos associativos indevidos aplicados a aposentados e pensionistas do INSS: o repasse de R$ 5,2 milhões da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) para a agência Orleans Viagens e Turismo, com sede em São Bernardo do Campo, na Região Metropolitana de São Paulo.
O caso envolve suspeitas de desvio de finalidade de recursos públicos, superfaturamento, lavagem de dinheiro e fraude em convênios com a Previdência Social.
A transação financeira, feita entre 2022 e 2023, teria sido justificada como pagamento por serviços de emissão de passagens aéreas para eventos e congressos da Contag. No entanto, investigações conduzidas pela PF, pelo Coaf, pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU) identificaram movimentações financeiras atípicas, aquisição recente de veículos de alto padrão pelos sócios da agência e ausência de comprovação adequada de muitos dos serviços prestados.
A origem do dinheiro: descontos não autorizados de aposentados
O elo entre os valores movimentados pela Contag e os benefícios do INSS está em descontos associativos aplicados diretamente na folha de pagamento de 34.487 aposentados — sem a devida autorização dos beneficiários.
Em outubro de 2023, o INSS autorizou o desbloqueio de consignações para a Contag com base em uma justificativa da entidade: segundo a confederação, beneficiários teriam enfrentado dificuldades para autorizar os descontos pelo aplicativo Meu INSS, solicitando, então, uma liberação coletiva.
Contudo, auditoria posterior do TCU revelou que apenas 213 beneficiários haviam autorizado formalmente o desconto, o que torna ilegal o desbloqueio dos demais 34 mil.
Um trecho do relatório da PF afirma:
“A decisão administrativa que autorizou os descontos em massa carecia de amparo legal e de provas da manifestação individual de vontade. A alegação de instabilidade no aplicativo não foi acompanhada de evidências técnicas suficientes.”
Além disso, a Dataprev, estatal de tecnologia que operacionaliza o sistema do INSS, executou o desbloqueio com base em uma listagem enviada pela própria Contag, sem checagem formal. A Nota Técnica nº 18/2023/CGPAG/DIRBEN-INSS, que embasou a decisão, foi classificada posteriormente como “eivada de ilegalidade” pelo TCU.
O contrato com a agência de turismo: legal ou fachada?
Segundo os registros oficiais, a Contag contratou a Orleans Turismo após um processo licitatório. A empresa recebeu R$ 5,2 milhões para fornecer passagens aéreas e serviços logísticos para eventos sindicais e reuniões em Brasília e outras capitais.
Contudo, os investigadores apontaram diversas irregularidades:
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A Orleans é uma empresa de pequeno porte, sem histórico prévio de grandes contratos públicos;
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Possui 12 veículos registrados em nome dos sócios, incluindo modelos de luxo adquiridos entre 2022 e 2023;
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O perfil de gastos não corresponde ao fluxo de caixa registrado até então;
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O volume de passagens adquiridas é considerado desproporcional à média de eventos promovidos pela Contag no período.
A PF aponta que os repasses da Contag à agência coincidem com o período de maior volume de descontos indevidos autorizados pelo INSS, sugerindo que o dinheiro oriundo da folha de aposentados pode ter sido redirecionado para contratos irregulares.
Defesa da empresa
Em nota, a Orleans Turismo afirmou que:
“Celebramos contrato regular com a CONTAG após processo licitatório, com emissão de faturas, relatórios e prestação de contas. Nunca mantivemos qualquer vínculo de amizade ou sociedade com dirigentes da entidade. Todos os documentos comprobatórios serão entregues às autoridades.”
A defesa dos sócios alega que os veículos foram comprados com recursos privados e que as operações financeiras estão todas declaradas.
Coaf detecta fracionamento de R$ 26,4 milhões
Além da Orleans Turismo, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou movimentações atípicas de R$ 26,4 milhões fracionados entre 15 pessoas físicas e jurídicas ligadas à Contag.
O fracionamento, técnica comum em esquemas de lavagem de dinheiro, consistiu na divisão dos valores em múltiplas transferências de baixo valor, com o objetivo de burlar os sistemas de alerta bancário.
Os nomes dos destinatários ainda não foram divulgados, mas a PF solicitou quebra de sigilo bancário e fiscal dos envolvidos, além de acesso a contratos de eventos realizados pela Contag entre 2020 e 2024.
Operações e desdobramentos judiciais
A Justiça Federal do Distrito Federal autorizou:
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Mandados de busca e apreensão nas sedes da Orleans Turismo e nas residências dos sócios;
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Acesso aos registros de passagens emitidas;
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Análise dos extratos bancários da Contag e da empresa entre 2022 e 2024;
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Levantamento de eventuais vínculos entre dirigentes da Contag e empresas contratadas.
O caso está ligado à Operação Falso Irmão, iniciada em 2024, que já havia revelado fraudes envolvendo outras entidades associativas que aplicavam descontos indevidos e canalizavam os recursos para empresas terceirizadas.
Em paralelo, a CGU e o TCU recomendaram a suspensão imediata de todos os convênios da Contag com o INSS, além da criação de um novo modelo de validação de autorizações associativas, com dupla autenticação eletrônica e consentimento renovável.
Um problema que compromete a credibilidade da Previdência
A sucessão de escândalos envolvendo descontos indevidos, omissão institucional e uso indevido de recursos já levou à demissão do presidente do INSS em 2024, derrubou licitações, e travou o sistema de manutenção de benefícios — com impacto direto sobre a fila de espera, que em abril de 2025 superou 1,9 milhão de processos pendentes.
Além do impacto operacional, a situação revela uma crise profunda de governança institucional, em que entidades privadas, por meio de convênios pouco transparentes, passaram a acessar diretamente os rendimentos de aposentados, com respaldo implícito de setores do próprio Estado.
Aposentadorias na mira da corrupção sistêmica
O caso da Contag e da Orleans Viagens representa muito mais do que um desvio pontual. Ele simboliza o uso político, financeiro e ilícito das estruturas do INSS como canal de captação de recursos, muitas vezes em prejuízo direto de quem mais precisa: os mais de 25 milhões de brasileiros que vivem com até 2 salários mínimos mensais oriundos da Previdência.
A apuração ainda está em curso, mas os indícios são graves. E, se confirmados, revelarão um esquema institucionalizado de apropriação indireta de benefícios sociais.
A lição deixada é clara: qualquer sistema que permita acesso automático à folha do INSS, sem transparência, rastreabilidade e autenticação forte, é um convite à fraude.