O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) atravessa uma de suas maiores crises operacionais em décadas. Segundo relatório da Polícia Federal (PF) divulgado em abril de 2025, o esquema de descontos associativos fraudulentos, que já havia sido denunciado pela Controladoria-Geral da União (CGU) em 2024, provocou um impacto devastador na fila de atendimento do INSS — afetando diretamente milhões de brasileiros que aguardam a concessão ou revisão de benefícios.
Entre janeiro de 2023 e maio de 2024, quase dois milhões de requerimentos foram registrados apenas para tratar de exclusões ou bloqueios de mensalidades associativas ou sindicais indevidas. O número representa 16,6% de toda a demanda nacional processada pelo INSS no período. Mais do que apenas uma fraude financeira, o esquema desencadeou um colapso na capacidade administrativa da Previdência, ampliando drasticamente o tempo de espera por serviços essenciais.
A fraude documentada: quase 1,1 milhão de casos sem consentimento
Segundo dados da PF, foram 1.163.455 requerimentos apenas do serviço “Excluir mensalidade de associação ou sindicato no benefício” (código 3854), e 743.729 do serviço “Bloqueio e desbloqueio de mensalidade associativa ou sindicato” (código 16315).
Desses, mais de 90% continham manifestação expressa dos segurados afirmando que jamais autorizaram os descontos.
Esses requerimentos, na avaliação da PF, seriam totalmente evitáveis caso o INSS e as entidades conveniadas tivessem cumprido os requisitos mínimos de autorização formal do beneficiário. Em números, foram 1.056.290 registros de fraudes documentadas, em que o titular negou ter consentido com qualquer filiação ou mensalidade.
O custo da fraude: mais de 392 mil horas de trabalho desviadas
A auditoria calculou que o atendimento desses pedidos consumiu cerca de 392.359 horas de trabalho apenas da CEAB-MAN (Central Especializada de Análise de Benefícios – Manutenção), unidade interna do INSS responsável pela análise de pedidos diversos.
Traduzido em esforço humano, isso corresponde a 49.045 dias de trabalho de um servidor com jornada de 8 horas por dia — ou seja, o equivalente a 187 servidores trabalhando por um ano inteiro, exclusivamente para corrigir fraudes que nunca deveriam ter ocorrido.
Enquanto isso, a fila geral do INSS voltou a ultrapassar 1,8 milhão de requerimentos em espera no início de 2024, segundo dados do Ministério da Previdência Social. O tempo médio de espera, que havia caído para cerca de 45 dias no início de 2023, saltou para mais de 72 dias em média em 2024, com picos regionais que chegam a ultrapassar 100 dias.
O retorno do bônus: tentativa de acelerar a fila
Para conter o colapso, o governo federal editou em abril de 2025 a Medida Provisória nº 1.232, que restabeleceu o pagamento de bônus por produtividade aos peritos médicos e analistas do INSS.
O bônus — de R$ 62 por processo adicional para analistas, e R$ 75 para peritos médicos — havia sido extinto em 2022 por decisão do TCU, mas foi reintroduzido como medida emergencial para enfrentar o represamento.
A MP prevê pagamento adicional para os servidores que realizarem análises além da meta mínima, com o objetivo de reduzir a fila em até 30% até o final do ano. No entanto, especialistas ouvidos por veículos como Folha de S.Paulo, O Globo e G1 alertam que o bônus é paliativo, e que enquanto não houver reformulação no sistema de autorização de descontos, a fila seguirá sendo retroalimentada por fraudes e processos corretivos.
Uma fraude de longa data, agora revelada em escala nacional
O problema dos descontos não autorizados em aposentadorias é antigo. Desde meados dos anos 2000, aposentados e pensionistas relatam cobranças indevidas vinculadas a sindicatos e associações que não reconhecem.
Essas entidades, muitas vezes sem sede ou representatividade real, firmavam convênios com o INSS e passavam a aplicar descontos diretamente na folha de pagamento — geralmente entre R$ 20 e R$ 50 por mês. O pequeno valor, diluído, dificultava a percepção do prejuízo.
Em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) já alertava sobre a ausência de controle formal sobre esses descontos. Em 2022, o INSS chegou a suspender mais de 1,3 milhão de contratos com associações após constatar irregularidades em auditorias internas. Ainda assim, o sistema permaneceu vulnerável — e o número de fraudes explodiu novamente entre 2023 e 2024.
Consequências políticas: demissões e novas investigações
A Operação Falso Irmão, deflagrada em agosto de 2024, levou a demissão de Alessandro Stefanutto, então presidente do INSS, e ao cumprimento de mandados de busca e apreensão em sete estados.
Entre os alvos estavam sindicatos fantasmas, consultorias de folha de pagamento, representantes de entidades conveniadas e servidores federais acusados de omissão ou conivência.
O caso ainda é investigado pela Polícia Federal, pela CGU, pelo MPF e pelo TCU, e pode culminar em uma nova reestruturação do setor de consignações do INSS — incluindo possível revogação em massa de convênios e responsabilização penal de dirigentes de associações envolvidas.
O que pode mudar daqui pra frente?
Diversas propostas tramitam atualmente no Congresso Nacional, entre elas:
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Criação de um cadastro único nacional de associações aptas a firmar convênio com o INSS, com critérios de integridade;
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Obrigatoriedade de autenticação eletrônica em duas etapas para autorizar qualquer desconto;
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Proibição de adesão automática a entidades por telefone, e-mail ou intermediação de terceiros;
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Exigência de validação periódica da vontade do associado;
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Reestruturação completa do sistema de folha do INSS para maior transparência e auditabilidade.
A própria CGU sugeriu a suspensão total de novos convênios associativos por 12 meses, até que um novo modelo legal e técnico seja implementado.
A fila não é apenas um problema de volume, mas de fraude e estrutura
O caso dos descontos indevidos revelou que a tão criticada “fila do INSS” não é apenas fruto de má gestão ou excesso de demandas. Ela é, também, produto direto de práticas fraudulentas enraizadas no sistema e da fragilidade estrutural de uma autarquia que lida com mais de 38 milhões de beneficiários mensais.
A urgência por reformas vai além da redução de prazos. Trata-se de proteger a dignidade dos brasileiros que mais precisam da Previdência — e de recuperar a confiança em um sistema que, até aqui, falhou com seus próprios segurados.