Os ataques recentes e intensificados do presidente Donald Trump à Universidade de Harvard representam muito mais do que uma mera crítica a uma instituição de ensino; são uma peça exemplar de retórica populista anti-elite, cuidadosamente construída para inflamar sua base, delegitimar um símbolo do establishment acadêmico e justificar ações punitivas do governo. A longa postagem feita por Trump em sua plataforma Truth Social, na qual chama professores de “idiotas esquerdistas” e a universidade de “piada” que ensina “ódio e estupidez”, revela um manual de táticas de comunicação agressivas, desdobrado após a administração cortar o financiamento federal da instituição por esta ter rejeitado mudanças políticas impostas por Washington. Analisar a retórica de Trump contra Harvard é entender como a guerra cultural se manifesta no discurso político contemporâneo.
O Arsenal Verbal: Insultos, Generalizações e Capitalização Enfática
A linguagem utilizada por Trump em sua postagem é deliberadamente incendiária e segue padrões recorrentes em seu discurso:
- Ataques Ad Hominem: Desqualificação pessoal e direta do corpo docente (“idiotas esquerdistas”, “cérebros de passarinho”), evitando um debate substantivo sobre ideias ou currículos.
- Generalizações Abrangentes: Afirmações radicais e sem nuances, como a de que Harvard contrataria “quase todos” da “esquerda radical” ou que a universidade seria apenas capaz de ensinar o “FRACASSO”. Isso simplifica a realidade complexa de uma grande universidade para encaixá-la na narrativa desejada.
- Tom de Desprezo e Condenação: Uso de termos como “piada”, “vergonha”, “grosseiramente inapta” para expressar repulsa e incitar o mesmo sentimento em seus seguidores.
- Ênfase Tipográfica: O uso de letras maiúsculas (FRACASSO, NA HORA, PIADA) – uma marca registrada de sua comunicação digital – serve para amplificar a mensagem, transmitir urgência e raiva, e garantir que os pontos de ataque se destaquem.
Personificando o ‘Inimigo’: Indivíduos Como Símbolos do Todo
Uma tática central na retórica de Trump é selecionar indivíduos específicos e transformá-los em símbolos de tudo o que ele considera errado na instituição como um todo. Neste caso:
- Claudine Gay: A ex-reitora, que renunciou após polêmicas envolvendo plágio e a gestão de manifestações antissemitas no campus, é usada como exemplo máximo da suposta incompetência, falha moral e até “vergonha” que Harvard representaria. A crítica se foca não apenas nos problemas que levaram à sua renúncia, mas no fato de ela ter sido mantida como professora (“em vez de demiti-la NA HORA”), o que é apresentado como prova de leniência ou conivência institucional com a “esquerda radical”.
- Bill de Blasio e Lori Lightfoot: A contratação de dois ex-prefeitos proeminentes do Partido Democrata (Nova York e Chicago) como fellows ou pesquisadores visitantes em escolas de Harvard (Instituto de Política e Escola de Saúde Pública, respectivamente) é citada como evidência irrefutável de que a universidade “perdeu o rumo” e está dominada por uma agenda partidária específica. Ignora-se a prática comum de universidades convidarem figuras públicas de diferentes espectros para compartilhar experiências, enquadrando-a puramente como aparelhamento ideológico.
Ao focar nessas figuras, Trump cria bodes expiatórios e simplifica problemas complexos, tornando o ataque mais palatável e direcionado para sua audiência.
A Estratégia da Conflação: Misturando Alhos com Bugalhos
Outro elemento chave da retórica trumpista é a conflação de diferentes tipos de críticas. Questões potencialmente legítimas ou que merecem debate sério – como a melhor forma de combater o antissemitismo em campi universitários (a justificativa oficial para as políticas rejeitadas por Harvard) ou os processos internos para lidar com acusações de plágio – são misturadas e subsumidas por ataques ideológicos generalizados contra a “esquerda radical” e a suposta falta de “decência” da instituição.
Essa tática serve para obscurecer as nuances e pintar toda a universidade com a mesma tinta negativa, usando controvérsias pontuais para validar uma condenação ideológica total. O motivo original da disputa (a política anti-antissemitismo) quase desaparece sob o peso do ataque à alegada hegemonia esquerdista.
Narrativa Populista: O Povo vs. a Elite Corrompida
Todo o ataque se insere na clássica narrativa populista do “nós” (o povo, os valores tradicionais, o bom senso) contra “eles” (a elite corrupta, intelectualizada, desconectada, ideologicamente enviesada). Harvard, como símbolo máximo da elite acadêmica e intelectual americana (e global), torna-se o alvo perfeito. Ao chamá-la de “piada” que ensina “ódio e estupidez” e que não merece reconhecimento ou verbas públicas, Trump a posiciona como uma instituição falida e antagônica aos interesses e valores do “povo” que ele afirma representar.
Justificando a Punição: Retórica como Legitimadora da Ação
É fundamental notar que essa escalada retórica acontece depois da decisão administrativa de cortar o financiamento federal a Harvard. O discurso virulento de Trump serve, portanto, como uma justificativa a posteriori para a punição financeira. Ao pintar Harvard como um ninho de “idiotas esquerdistas” que ensinam o “fracasso”, ele busca legitimar perante sua base e a opinião pública a medida drástica de retirar recursos públicos da instituição por sua recusa em acatar as determinações do governo.
O Manual Populista Contra a Academia em Ação
Os ataques de Donald Trump a Harvard são um exemplo claro de como a retórica populista pode ser mobilizada contra instituições acadêmicas percebidas como adversárias ideológicas. Através de insultos, generalizações, seleção de bodes expiatórios e a conflação de diferentes tipos de críticas, Trump constrói uma narrativa de decadência moral e intelectual que visa delegitimar não apenas Harvard, mas, por extensão, o pensamento crítico e a autonomia universitária. Essa ofensiva discursiva, alinhada à ação concreta de cortar verbas, demonstra a disposição em usar o poder do Estado para impor visões políticas e culturais, aprofundando as divisões na sociedade americana e colocando em xeque a liberdade acadêmica. É a cartilha da guerra cultural sendo aplicada com intensidade máxima contra um de seus alvos mais simbólicos.