O Brasil mergulhou em um debate incomum e provocador nos últimos dias: o batismo de bonecas reborn. A polêmica ganhou fôlego após o padre Chrystian Shankar, da Diocese de Divinópolis (MG), se manifestar publicamente contra a realização de rituais católicos em bonecos hiper-realistas, como batismo, catequese e até missa de sétimo dia. A recusa, feita em tom irônico e categórico, foi compartilhada em seu Instagram — onde soma mais de 3,7 milhões de seguidores — e rapidamente viralizou.
“Essas situações devem ser encaminhadas ao psicólogo, psiquiatra ou, em último caso, ao fabricante da boneca”, disse o sacerdote.
Fé e limites: quando a Igreja diz “não”
A nota publicada por padre Chrystian é direta: ele se recusa a celebrar qualquer rito católico voltado a bonecas reborn — réplicas hiper-realistas de bebês, tratadas por algumas pessoas como filhos reais. Ele vai além, criticando o que considera um uso equivocado da fé, classificando os pedidos como desvios que requerem atenção profissional.
A Igreja Católica, que há séculos estabelece regras claras para sacramentos como o batismo, afirma que esses rituais são reservados a seres humanos vivos. O gesto do padre, portanto, não representa uma ruptura doutrinária, mas expõe um mal-estar crescente: até que ponto a fé pode (ou deve) lidar com demandas simbólicas criadas pela hipermodernidade?
Viralização e constrangimento
Nas redes sociais, vídeos de “mães reborn” viralizaram em plataformas como TikTok e Instagram. Em muitos deles, mulheres empurram carrinhos de bebê com bonecas reborn, simulam amamentação, interagem com voz afetiva e registram momentos como “primeiro banho” ou “saída da maternidade”. Embora alguns vejam nisso um gesto terapêutico — associado a perdas gestacionais ou solidão —, outros enxergam desequilíbrio emocional e até mau uso de recursos públicos.
O episódio se intensificou quando surgiram relatos de pessoas usando as bonecas para acessar benefícios destinados a crianças, como assentos preferenciais, filas especiais e atendimento médico prioritário.
Câmara reage: três projetos em tramitação
Diante da polêmica, três parlamentares protocolaram projetos de lei visando regulamentar o uso de bonecas reborn em espaços públicos e serviços do Estado:
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PL 2.326/2025 – De autoria do deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP), propõe proibir simulações clínicas em hospitais públicos e privados com bonecas reborn. O objetivo é proteger a credibilidade do atendimento médico.
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PL 2.320/2025 – Assinado por Dr. Zacharias Calil (União-GO), prevê punições administrativas para quem tentar obter benefícios sociais com bonecos simulando crianças.
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PL 2.323/2025 – De Rosângela Moro (União-SP), prevê acolhimento psicossocial compulsório para pessoas que mantêm vínculos afetivos com bonecas reborn, como alternativa de cuidado e prevenção de distorções comportamentais.
A expectativa é que os projetos enfrentem forte polarização: de um lado, parlamentares conservadores e setores religiosos; do outro, defensores de liberdade individual e saúde mental integrativa.
Dimensão psicológica: transtorno ou afeto?
Psicólogos ouvidos por este jornal explicam que o vínculo com objetos simbólicos não é, por si só, sinal de transtorno mental. Em contextos específicos — como luto, traumas ou isolamento social —, os bebês reborn podem funcionar como apoio emocional temporário. No entanto, a substituição prolongada da interação humana por vínculos com objetos pode indicar a necessidade de acompanhamento terapêutico.
A psicóloga Miriam Salomão, especialista em luto e perdas, explica:
“Há uma diferença entre uso simbólico e dependência. Se uma mãe usa o reborn para simbolizar um luto perinatal, é compreensível. O problema está na simulação da realidade como fuga contínua.”
Entre a empatia e o escárnio
Embora o padre Chrystian tenha mantido a ortodoxia em relação à doutrina católica, sua linguagem gerou críticas de especialistas que alertam para os riscos da ridicularização. O uso de expressões como “missa de sétimo dia para reborn que arriou a bateria” foi considerado insensível por parte da comunidade terapêutica.
Já entre os fiéis e usuários de redes sociais, o padre foi amplamente aplaudido. Nos comentários de sua postagem, frases como “obrigado por colocar limites” e “o mundo está ficando doido” se repetem, revelando o choque cultural que a era da inteligência artificial e da hiper-realidade impõe à sociedade.
O que está realmente em jogo?
A discussão sobre bonecas reborn é, na verdade, a ponta de um iceberg mais complexo. Em tempos em que o real e o simbólico se confundem com facilidade, a linha entre empatia, fantasia e fraude torna-se turva. A recusa do padre escancara um dilema: como instituições milenares devem reagir diante de novas formas de expressão emocional? E até onde o Estado deve intervir em vínculos afetivos atípicos?
Se por um lado há exageros e distorções, por outro há uma população vulnerável que talvez esteja apenas buscando conforto em um mundo cada vez mais impessoal. O desafio será encontrar o equilíbrio entre acolhimento e limite, empatia e responsabilidade.