Uma morte anunciada com lucidez
Morreu nesta semana, aos 88 anos, o papa Francisco. Não sem aviso. Seu estado de saúde vinha se agravando desde o início do ano, com internações frequentes e crises respiratórias. Mas sua lucidez permaneceu intacta até os últimos dias — tempo suficiente para garantir que sua partida seguisse um roteiro que ele mesmo escreveu: o mais simples funeral papal da história moderna.
Não por acaso. O líder da Igreja que rejeitou tronos, títulos e sapatos vermelhos queria também rejeitar a morte espetacularizada. Francisco não seria velado como um monarca. Seria sepultado como um servo.
Um novo rito para um novo tempo
O Vaticano confirmou que o funeral seguirá o novo modelo litúrgico aprovado por Francisco no ano anterior, intitulado Ordo Exsequiarum Romani Pontificis — um livro que reformula completamente o processo fúnebre de um papa.
Trata-se da primeira vez que esse rito será posto em prática. E ele não é apenas uma inovação formal. É um manifesto teológico. Um gesto que retira a centralidade da figura papal como “chefe de Estado” e a reposiciona como pastor do povo, discípulo do Cristo que andava entre os pobres.
Etapas da cerimônia: um ritual de descentralização
O novo modelo é dividido em três momentos, chamados de “estações”. E cada uma delas carrega um deslocamento simbólico:
1. A capela privada: onde o silêncio é maior que o protocolo
O corpo de Francisco será velado primeiro em sua capela particular, não no quarto papal como manda a tradição. A escolha tem peso: a capela é lugar de oração, não de poder. Lá, o Camerlengo — autoridade que comanda o Vaticano durante a vacância — confirmará a morte oficialmente.
Em seguida, o corpo será colocado em um caixão de madeira simples, dentro de um de zinco. Francisco eliminou o terceiro caixão (feito de chumbo ou carvalho) que antes simbolizava riqueza e durabilidade. Para ele, morrer bem era morrer leve.
2. A Basílica de São Pedro: de palco a espaço de comunhão
Na segunda estação, o caixão é levado à Basílica de São Pedro. Lá, ocorre a Missa Exequial, aberta ao público. Mas sem catafalco, sem plataformas, sem elevações visuais.
Francisco fez questão de abolir essa estrutura, tradicionalmente usada em funerais de Estado. Para ele, o papa não deveria ser visto como um soberano. A urna estará no mesmo nível do povo. O gesto visual traduz a teologia de todo um pontificado: estar ao lado, e não acima.
3. O sepultamento fora do Vaticano
A maior ruptura simbólica talvez esteja na terceira estação: Francisco será enterrado fora da Necrópole Vaticana, onde repousam os restos de 91 papas. Seu desejo, manifestado em vida, é ser sepultado na Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma.
É lá, sob os mosaicos do século V, que ele costumava rezar antes de embarcar em viagens missionárias. Não é apenas uma escolha afetiva. É política, espiritual, pastoral. Francisco quer descansar onde o povo comunga — não entre relíquias, mas entre orações.
Novendiais: o tempo da memória coletiva
Seguindo a tradição, serão celebradas nove missas consecutivas após o funeral — as chamadas novendiais. O período de luto canônico se estende por nove dias e tem dupla função: prestar homenagens e preparar espiritualmente a Igreja para o próximo conclave.
Durante esse tempo, a Igreja estará em suspensão: sem papa, mas em escuta. Um tempo simbólico de despojamento e discernimento — justamente o que Francisco mais defendeu ao longo dos seus 12 anos de pontificado.
A renúncia dos títulos: o poder da ausência
Outro gesto que passa despercebido, mas que é central, está na linguagem. No funeral de Francisco, ele será chamado apenas de “papa” ou “bispo de Roma”. Nada de “Vigário de Cristo”, “Príncipe dos Apóstolos”, “Servo dos Servos de Deus”.
Esses títulos, heranças de uma Igreja imperial, foram suavemente afastados por ele durante sua vida — e agora oficialmente eliminados de sua morte. O papa que optou por um carro popular e almoçava com moradores de rua será lembrado como ele era: Francisco, o homem que abraçava antes de abençoar.
A liturgia como testemunho final
Francisco sabia que a liturgia não é neutra. Ela comunica, educa, provoca. Ao mudar o formato do próprio funeral, ele não apenas “atualizou” um protocolo. Ele redefiniu o que significa morrer como líder religioso em pleno século XXI.
Ele não quis uma morte sacralizada. Quis um fim coerente. E, com isso, talvez tenha produzido a mais poderosa homilia de seu papado.
O que a Igreja faz com esse gesto?
Essa é a pergunta que paira sobre o Vaticano. Francisco partiu, mas não em silêncio. Seu funeral é uma convocação. Um convite à coerência. Uma denúncia ao clericalismo. E um lembrete: a Igreja precisa parecer com o Evangelho que prega.
O risco agora é simbólico. Se a Igreja não levar a sério esse último gesto, talvez nunca tenha entendido os anteriores. Mas se escutar — como Francisco sempre pediu — talvez reencontre, no luto, o caminho da missão.