A ascensão inesperada: do conclave ao gesto inaugural
Era 13 de março de 2013. A fumaça branca rompeu os céus de Roma, mas o que emergia do Vaticano não era apenas um novo pontífice: era uma nova lógica de liderança. Jorge Mario Bergoglio não era favorito, nem protagonista dos bastidores. Mas foi ele quem conquistou, na quinta rodada de votação, os 77 votos necessários para se tornar o 266º papa da Igreja Católica. E com isso, o primeiro latino-americano, o primeiro jesuíta, e o primeiro a escolher o nome de Francisco — não por acaso.
“Foi como se os cardeais tivessem ido buscá-lo no fim do mundo”, disse o próprio em sua primeira fala pública, em tom humilde, quase desconcertante. Ele não usava as vestes tradicionais completas. Não levantou os braços em triunfo. Pediu, antes de abençoar, que o povo rezasse por ele.
Foi nesse gesto que começou, de fato, o seu pontificado.
Herdeiro de uma crise: escândalos, renúncia e um trono em chamas
A escolha de Francisco foi tudo menos simbólica. Era estratégica, emergencial. Ele foi eleito para apagar incêndios em um Vaticano mergulhado em escândalos financeiros e denúncias de abusos sexuais sistemáticos. Apenas um mês antes, em fevereiro de 2013, Bento XVI havia renunciado ao papado — algo que não ocorria desde Gregório XII, em 1415.
O gesto de Bento expôs as fraturas internas da Igreja. A renúncia não era apenas física; era também institucional. A cúria estava rachada, e os vazamentos do escândalo Vatileaks revelavam uma rede de intrigas palacianas, corrupção e encobrimentos. O novo papa precisaria de algo mais que fé. Precisaria de coragem.
A reforma invisível: menos ouro, mais gente
Francisco iniciou sua gestão alterando o estilo, os gestos e os símbolos. Escolheu viver na Casa Santa Marta em vez dos aposentos papais. Deixou os sapatos vermelhos e preferiu os pretos. Viajou de Fiat, recusou joias, e optou por cruz de prata. Não era teatro: era doutrina.
Mas a transformação mais profunda estava nos bastidores. Reformou a Cúria Romana com a constituição Praedicate Evangelium, que descentralizou o poder e possibilitou que leigos — incluindo mulheres — ocupassem cargos antes reservados exclusivamente ao clero. Com isso, figuras como Raffaella Petrini e Simona Brambilla passaram a liderar estruturas-chave do Vaticano.
A escolha era clara: menos hierarquia, mais serviço.
Um papa político: diplomacia como missão
Poucos pontífices entenderam tão bem o valor geopolítico da Igreja como Francisco. Atuou como mediador silencioso na reaproximação entre Cuba e Estados Unidos em 2014. Reuniu-se com líderes de religiões concorrentes e de Estados adversários. Em 2016, promoveu o primeiro encontro entre a Igreja Católica e a Ortodoxa Russa em mais de mil anos.
Ele também selou um acordo provisório com a China, permitindo que o governo e o Vaticano negociassem conjuntamente a nomeação de bispos — um passo controverso, mas diplomático.
Sob seu comando, o Vaticano deixou de ser apenas um centro religioso e passou a atuar como um agente multilateral, influente em negociações sobre migração, meio ambiente e justiça social.
A teologia da inclusão: um papa para os que ficaram de fora
Francisco foi o papa da escuta. Não apenas no discurso, mas na prática. Realizou sínodos que convocaram bispos, leigos, cientistas, indígenas e jovens — sobre temas antes considerados tabus.
Defendeu o acolhimento de homossexuais, o diálogo com o Islã, e a comunhão para divorciados em segunda união. Enfrentou setores conservadores que viam em suas decisões uma “erosão da doutrina”. Mas para Francisco, evangelho não é doutrina fria. É ação viva.
“Quem sou eu para julgar?” — sua célebre frase, dita a bordo de um avião papal, tornou-se símbolo de sua abordagem pastoral: aproximar, não afastar.
Um pastor ecológico: fé com a terra nos pés
Entre as marcas mais poderosas de seu pontificado está a encíclica Laudato Si’, publicada em 2015. O documento conecta espiritualidade com sustentabilidade, denunciando a exploração do planeta e o modelo econômico predatório.
“Tudo está interligado”, escreveu Francisco. Não era apenas um alerta ambiental, mas um chamado a uma nova ética civilizacional.
Seus gestos acompanharam sua escrita. Lavou os pés de imigrantes em prisões italianas, jantou com moradores de rua, visitou campos de refugiados. Falava com o corpo. E com os atos.
O tempo e o peso: a reta final de um pontificado singular
Os últimos anos de Francisco foram marcados por limitações físicas. Passou por cirurgias no intestino, na perna, e ficou internado por semanas em 2025. Ainda assim, não recuou de sua missão. Continuou despachando, escrevendo, gravando mensagens.
Na manhã de 13 de março deste ano, data que marcava seus 12 anos de pontificado, uma missa foi celebrada em sua homenagem no hospital Gemelli. No quarto andar, isolado, Francisco ouvia. Orava. Respirava com dificuldade, mas com lucidez. Era seu último aniversário como pontífice.
Faleceu no dia 21 de abril, aos 88 anos, deixando para a Igreja um dilema: seguir adiante ou voltar atrás.
A leitura estratégica aponta para o futuro
Francisco não foi apenas um papa. Foi um divisor. Deixou uma Igreja menos clerical, mais popular. Menos autoritária, mais escutadora. Sua figura foi mais contestada que a de seus antecessores — e talvez, por isso mesmo, mais revolucionária.
A sucessão agora será disputada entre correntes internas que ele mesmo expôs: a dos que querem continuidade e a dos que desejam retorno ao antigo modelo. Seja qual for o desfecho, o ciclo de Francisco mostrou que a Igreja pode — e precisa — falar a linguagem do tempo presente.
O dilema está posto. O risco, se nada for feito, é a irrelevância. Mas a semente de Francisco já foi plantada — e sua colheita, inevitável.